quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

12 Badaladas

viajámos desde o lugar onde os segredos despertam
até à terra da meia-noite. foi suave; não a viagem
mas o chegar dos ponteiros. sentamo-nos agora
de olhos fixos no rastejar regular dos segundos e
sussurras "Que instante após o depois que chega?"
finjo não entender a pergunta: entender seria agora
o inútil dos nossos passos [ e gemem-me os pés ].
lá bem longe há a guerra e contas-me as balas
e os gordos de gravata roendo ossos. e a meia-
noite que já chega e os segredos murchos, secos
nas nossas mãos. "Não quero ser Homem", choras.
bem sei, "Bem sei." Escutamos o terror da meia-
-noite e
______as bombas, Meu Deus, as bombas e
o napalm [salvem as crianças, porra - AS CRIANÇAS!]
Pedes: "Conta-me um segredo." não aqui, "Não agora."
os ponteiros erguem-se, ávidos da hora crua.
doze badaladas: imperturbáveis. no horizonte
desperta o silêncio.
os ponteiros prosseguem e na última badalada
já a meia-noite passou e vai-se o silêncio e
o grito de um metralhadora recorda-nos
esmalte grosseiro sobre ossos tão tenros.
"É preciso um segredo; neste instante para lá do fim",
murmuras a medo. entendo: "Regressemos."
de pés em ferida partimos da meia-noite até
à terra onde os segredos despertam.


Igor Lebreaud

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Mão Morta

hoje: crescem-me as mãos
pedindo
que as estenda
sob todas as lágrimas.
[mas falham-me os braços e não sei que gesto; balança-me o corpo incerto
de um abraço que não posso dar porque
todas as palavras, todos os verbos que se me adivinham
parecem agora tão vazios e dizer que
no anteceder da cova ainda se sonha o céu azul
é tão inútil de tão repetido e não adianta dizer
a cegonha
quando tudo nesses olhos são corvos.
e nos meus eu sei [como decerto sabias um dia]
que o sol se vai erguer no céu amanhã
indiferente e tão diferente
clamando ao mundo um novo Respirar;
porém falham-me os braços incapazes de dizer tudo isto e só o sopro gélido
do meu silêncio.]
hoje: crescem-me as mãos
num corpo que definha.


Igor Lebreaud

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

No Murmúrio das Águas

um sussurro. suave:
por onde caminhamos vagos, imperceptíveis
na margem do rio que procura a foz
e nós
a nascente.
é nesse sussurro que me olhas
é nesse
sussurro (tão suave)
que te encontro
quando as horas me exigem o passo
rápido dos homens cor de cinza
(e eu não quero ser cinza - não quero)
é nesse vibrar trémulo
das nossas vozes
é à margem desse rio
que colocamos a primeira pedra e
a pouco
e pouco surge
o templo inatingível
onde o tempo nunca chega.

(Suave: o homem faz-se tempo e as eras tomam
o seu nome)


Igor Lebreaud

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

O Teu Perfume

Sabes, o teu perfume
acabou.
sim, acredita: nem uma gota
no frasco
que me pediste para guardar.
Se o deitei fora?
enchi a casa com o teu perfume
e deixei que fizesse parte
da minha pele
até ser apenas um tom suave
nas paredes
desta casa.
Sabes, não é para
chorares.
o teu perfume estava gasto
ainda antes de
acabar.
por isso quando faço a barba
defronte do espelho
o frasco já não está
nesse reflexo
e
mesmo que ainda
esteja impregnado nesta casa
já não me pesa.
Sim, guardei o frasco:
mesmo vazio.

Botas de Aço

Katerina não dança, mas queria dançar: baloiça
suave baloiço nas botas de aço e diz que não canta: mas
sabe cantar. e é feliz no seu sorrir discreto e gosta de
chorar com o céu azul. Katerina diz que não onde dizem
que sim: mas é porque sabe que não: e não vê razão
para mentir assim. mas queria dançar e baloiça
suave baloiço nas botas de lastro que calça para não
sair do chão: porque se o céu é azul ela chora e
então sorri e apetece voar. Katerina sabe que a chuva
há-de passar: sem dúvida que há-de passar. amanhã
diz que será tudo um pouco mais leve e então baloiça
suave baloiço nas botas de aço que não quer tirar
não vá o céu escurecer e desatar a chover.

[tira as botas, Katerina.
voando para lá das nuvens:
todo o céu é azul.]


Igor Lebreaud

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

A Nuvem Sem Calças

tinhas maiakovski sobre a mesa. nos teus lábios formavam-se
gotas de orvalho. disseste "se ao menos a carne" e estremeceste.
a minha língua desenhou-te o peito e tu achaste que
"a carne devia ser nuvem" e sim, digo-te que sim. maiakovski
tenta dizer-me algo, encolhido sobre a mesa.
o que era? o que seria? a memória atrapalha-me: ainda tenho
uma língua desenhando o teu orvalho e o poeta gemendo
"Melhor que orações..." e o resto [que não me recordo, se dilui orvalho
ou nevoeiro] e insistes "se a carne fosse menos carne, então talvez o amor."
penso em maiakovski e pergunto-me se sobre a mesa estaria
um poema ou o poeta [nunca o homem: o homem apagou-se
quando se escreveu]. "Melhor que orações..." "Melhor que orações são..."
e não sei o que é que me dizia. a minha língua chora agora
o orvalho da tua boca de então. "a carne sendo nuvem então a língua
no meu peito seria amor" e não te entendo. só te pedi que deixasses
desenhar o orvalho nos teus lábios [e dos lábios para o peito e
do peito para as coxas e das coxas...] ah sim, já me recordo!
tinhas maiakovski sobre a mesa: "Melhor que orações são artérias e tendões."



Igor Lebreaud

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Manual da Criação

viram-te os dentes, espreitaram-te o cu;
tiraram-te medidas, deixaram-te nu.
cagaram-te em cima: fizeste-te tu.


Igor Lebreaud

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Nos teus braços

fui eu quem Trouxe o sangue a esta casa
Mas abandono agora Os traços oblíquos do meu caminho
e não
desejo mais senão o doce veneno do teu leito
que se torna chuva sobre o meu corpo nu
e atingir na nossa paz o imaculado perdão
(a culpa são fendas nos teus braços).
fui eu quem Partiu num dia distante
(ainda o meu nascer era sonho vago na criação do mundo)
e hoje já velho explico-te O Destino,
porque os velhos não querem crer
que todos os passos
que deram
são culpa sua
(e a culpa ainda te rasga os braços).
fui eu quem Desceu aos Infernos procurando
uma alma vadia que
há muito partira para outros Reinos
e é este homem cansado que agora chega
para se deitar no teu leito de chuva
pedindo Dá-me hoje um novo nome e
lava para sempre os meus pecados
(lentamente a culpa sara nos teus braços).

sábado, 8 de dezembro de 2007

Vislumbres do Real

abre a porta. vê a cova vazia em que dormimos.
ninguém sonha neste leito e somos as ostras
que recusaram seguir o carpinteiro, as que ele
não devorou mas ascenderam mártires canibais.
abre a porta. desliza e deita-te na cova vazia.
ninguém conhece o ar que o amanhã respira e
não dormimos, recusamos o sonho e o acordar.
nada nos pode salvar. e hasteamos a guerra.
abre a porta. nada ficou. é matar ou morrer.
abre a porta. vê a cova vazia que temos por altar.


Igor Lebreaud

Árvores de Vidro [Elegia]

às vezes O amor morre.
nem sempre se nota: permanece De pé,
guerreiro que nem a morte derruba,
Árvore de Vidro em campo de betão.
às vezes Muitas vezes O amor morre
e nem ele sabe.
insiste na vida, exige-se Eterno
(o amor não sabe que as folhas tombam no outono).
às vezes Se o amor morre
tenta respirar e massajar o peito.
diz Arranca o preto do cinza e banha-te na luz
mas respondes É tarde para cores tão nuas
e o amor sabe que sim. no fundo sabe que sim.
às vezes Quantas vezes O amor morre
e nem lhe fazem funeral.

[Passa-me a enxada]


Igor Lebreaud

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Café

sentámo-nos. sobre a mesa duas chávenas: vazias. finjo uma palavra que cai -morta- no abismo da tua chávena. acendo um cigarro que geme a agonia da sua cremação; nem o levo aos lábios: já ardeu. um instante: acendi-o no tic: inflamou-se no tac.

sentados, defronte da mesa fria do café, trocamos fantasmas e evitamos olhares. naquela mesa lá longe: estamos ainda sentados: antigos: no silêncio de um sorriso: há muito tempo. mas agora: tusso uma palavra: deita-la na chávena. penso: o amor era o silêncio.

sentávamo-nos noutra mesa: ainda lá estamos: esbatidos. penso:
o amor era outra mesa.
perguntas "Entendes?"
finjo que sim: e mergulho na chávena: vazia.


Igor Lebreaud

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Memória

sê meiga, meu amor. sê meiga.
sê branda na memória de ti que
me visita no cair desta noite.
menos perfume, meu amor. menos perfume.
e menos brilho no teu olhar para que
esta memória não viaje
para um sonho de saudade abstracta.
menos tu, meu amor. menos tu.
sê menos os teus cabelos e
menos ainda as tuas roupas e
esse teu sorriso e o teu andar
como de quem baila. sê menos
memória em mim.
liberta-me, meu amor. liberta-me.
deixa-me ser o pássaro ao qual abrem a gaiola
e não sabe para onde ir porque as asas
esqueceram como se afaga o céu.
sê adeus, meu amor. sê perdão.


Igor Lebreaud

Balada do Homem da Lua

foi ao nascer: os dedos fizeram-se agulhas e os lábios
arame farpado e o pénis míssil nuclear.
vinha para a rua e
as meninas de organdi
mostravam-lhe o corpo e diziam
"guardei-o para ti."
foi sem querer: abriu-lhes a pele e
fez tricot dos seus tendões: uma camisola
e algumas meias
para dias de mais frio.
explodiu-lhes lá dentro e deixou-as sem nada.
deram-lhe uma pasta e mandaram-no ser gente
e as meninas
de organdi
acenavam-lhe da rua [esta tão bonita; aquela tão nua].
rasgou-lhes os lábios;
explodiu-lhes lá dentro e ficou sem nada.
não soube entender: surgiu uma menina
Sem laços
Ou organdi
que disse "não te mostro o corpo; não sei se é para ti"
e ele rasgou-lhe os lábios:
furou-lhe o peito.
e sem ver que a menina trazia no cabelo
um enfeite que era a Lua
explodiu por dentro pedindo-lhe que fosse sua.
e a menina deu-lhe o enfeite
e ele carrega agora seu fardo lunar.
a Menina?
foi para a Lua bailar.


Igor Lebreaud

Mea Culpa

confesso: há um lírio casto crescendo espontâneo
no meu calcanhar.
faz comichão e os sapatos
impedem-me de o coçar quando se remexe
talvez à procura
da melhor posição. sim, é chato.
confesso também: tenho um cuco no meu crânio
que fala comigo -- em morse.
por vezes demoro a saber o que dizer
ao vizinho que me diz Bom Dia.
estou a ver se entendo o que me diz o cuco mas
nunca aprendi morse.
confesso por fim: as minhas entranhas revolvem
ao som de Mozart.
ainda não entendi que peça tocam e
é por isso que o que digo
às vezes não tem nexo:
não sei se digo Fígaro ou A Flauta Mágica.
e soa como gases.

(é por tudo isto que falhámos)


Igor Lebreaud

Pietá

se sabias Então porquê? se conhecias o deslizar
dos ponteiros Procurando a hora que entrego
Então porquê? o puxar de um cobertor
sobre outro corpo Imerso Nu no teu abismo
(a solidão é por vezes tão amarga e pedes mais um café)

se sabias Então porquê? outro olhar capaz
de quebrar ponteiros e vazio da tua luz
Então porquê? esta nova hora erguida
em jeito de troféu e tu já não és tu
(noutro dia olhei-te e deus caiu-me nos braços:

chorando)


Igor Lebreaud

Que Amor?

perguntas Então que amor; que tipo de amor
te trouxe aqui? [se tu não sabes; se afinal
não sabes...] Explico-te As montanhas procuram
arrancar-se à própria terra e outono e primavera
Nunca se encontram.
Então que amor? Esse que acredita que Um pouco mais
e toco no céu. [chega-te a mim]


Igor Lebreaud