terça-feira, 1 de abril de 2008

Mausoléu

nossos pais deixaram-nos
o túmulo,
a sombra do mausoléu que cobre
estas casas em que vivemos,
estas casas sem varanda,
de janelas entaipadas.
queríamos saber a cor
e a forma
do mausoléu de nossos pais
mas conhecemos apenas o frio
que nos lança a sua sombra.
e os fantasmas que aqui moram
apenas encolhem os ombros
a cada pergunta.
e há quem julgue ver o sol
na dança dos fogos-fátuos.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Esfera

tudo igual
deste lado do espelho,
nesta metade da laranja,
nesta parte da maçã.
a que árvore subimos?
de que árvore descemos?
qual o nome
desses ramos
onde saltamos com os pulmões
repletos da palavra
liberdade?
a bizarra simetria destes ramos
recorda-nos o impossível.
não dormiremos mais.
impede-nos o espelho,
evitam-no os ramos,
exige-o a maçã
perfeitamente unida:
uma só esfera.
tudo igual
deste lado do espelho.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Encontro

entre destino e feromonas
os olhos procuram os olhos
inquirindo identidades
e trocam verdades
"eu sou tão morto"
"quero renascer como tu".
contam as horas
que dançam para a despedida
e hesitam para regressar.

queriam saber
"em que traço vieste
sibilante
na minha noite sem rumo?"
algures os dois perdidos
entre destino e feromonas
inquirindo quantas horas
faltam para amanhã.

"traiu-nos o destino
prometido nos livros e
vendido na tv
e desvaneceram as feromonas
tombadas por terra
por milagre da física."
e ficam as horas que contam
fugazes cada abraço
e espreguiçam na distância.

entre a natureza e o acaso,
cresceu nova árvore no jardim.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Pouca Terra

estamos presos no tempo e espaço
deste comboio de lata
que anda em círculos lamentando
pouca-terra pouca-terra.
eu queria saber-te o nome e tu
conhecer-me o sonho.
não te olho
não me olhas
é um pacto firmado
em gestos não feitos.
penso na lata que nos prende
e tu no raio do círculo
que geme e se lamenta
pouca-terra pouca-terra.
um pouco mais de tempo
um pouco mais de espaço
e sabia-te o nome
e tragavas-me o sonho.
estamos presos e não te olho.
não me olhas.

Indisposto

é quando o perfume se entranha
se entrega
na carne rasgada
que as vísceras rodopiam
sibilando um prenúncio de morte
tão terrível
como o coração
que não recorda
o batimento.
é quando o perfume se despega
se desprega
das peles
e já todos os órgãos
do teu corpo
o reclamam
que entendes o revolver
do estômago tão sensível
e o desgosto gástrico.
é quando o perfume se esbate
te bate
na memória
que o orgânico
se contorce
com os tendões
rangendo nos ossos
e o intestino
se confunde com
o esófago.
os teus olhos estão secos.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

O Terreno Vazio

a minha casa partiu. porque às vezes
as casas fazem isso
ganham pernas e andam
metem-se ao caminho sem
aviso de qualquer espécie e quando
chegamos à noite
cansados
damos com o terreno vazio e nem
um bilhete de despedida.
claro, podemos pensar
que alguém nos roubou a casa
por inveja ou
até pobreza que é
uma forma mais triste
da própria inveja
mas a verdade é que sabemos
que as casas só partem porque querem.
e a minha casa partiu e eu
hoje durmo na rua
a apanhar frio e uma doença
talvez pneumonia
não sei se ligeira.
digo hoje durmo na rua
mas não durmo na verdade por faltar
o conforto da minha casa
e fico a pensar
onde estará e se virá
amanhã em silêncio
e eu não diria nada
fingiria estar a chegar cansado
e abriria a porta para entrar.
a minha casa partiu. e eu não tenho lugar.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Sexo, Morte e A Origem do Universo

sinto agora o atingir-me do ontem: explosão
de átomos e fere-me a luz: de saber
que o dia em que nasci é: tão real
como este instante que me aproxima do túmulo.
estou agora na tua cama e no útero
de minha mãe e
na cova que me abraça e me diz o amor,
que bom que foi ter-me dentro de si.
sinto agora o meu dedo na minha boca
como mamilos erectos ou vermes
devorando-me a língua porque
tudo é matéria e talvez sonho-prisão
neste instante em que percebo a explosão
que me aperta e condiciona à estranha palavra
“agora”.

sinto agora o amanhã como passo já dado
e o teu corpo é o berço descoberto em que dormi e
o rubro veludo do meu caixão se afinal
me esmagam, me apertam, me atiram
para a estranha palavra “presente”.

domingo, 20 de janeiro de 2008

O Encerrar das Ruas

vi as ruas fecharem-se esta noite: como
homens cobrindo o corpo após pecar.
o som dos meus passos naquela calçada
está mudo: enclausurado.

estamos presos no exterior das ruas e
cada gesto nosso: confinado
à prisão: dessas ruas. cada beijo, cada
saltar cruel do peito e contorcer do cérebro
já sucedido ou por suceder:
encerrados nessa calçada húmida da chuva
que já nela não chove mas:
ainda choveu.

vi as ruas fecharem-se esta noite
e permanecerem tão abertas
como todos os livros. e o homem
permanece nu, sob as vestes.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Inverno

soprou na vela e: ele: tombou já frio
mas: o silêncio do seu corpo
não se fez ouvir e ela: tomou a vela no seu
colo: que se roçou ofegante na cera fálica:
já fria. e ele quis gritar e:
fazer-se ouvir: maior que o fogo apagado:
e ela de vela apagada: sorrindo: surda
ao silêncio do homem tombado: já frio

(quando se erguer e tropeçar no corpo: dele:
já nenhuma chama: e a cera: cansada:
impossível.) faz frio

domingo, 13 de janeiro de 2008

Lapis Philosophorum

dizes: olha vês? e uma chama
chicoteia para fora dos teus lábios.
e queimam-se as vestes e
os corpos de cinza enredam-se
em vulcânicas convulsões.

(porque te ardo? em que tardo?)

dizes: o fogo que somos é agora
combustão e: dá-me água: que esta sede
cresce neste leito em que: os corpos
ainda ígneos se fundem e gemem
em estranhas formas e padrões.

(porque tardo? como te ardo?)

digo: tenho em mim: no que é teu:
toda a água e: toda a chama: bizarra
estrela: nos teus lençóis: os nossos
corpos: em seis gritos comungados:
em carnal etérea harmónica perfeição.

domingo, 6 de janeiro de 2008

O Soldado Ébrio

não sei por que mais arame rastejar:
se estas farpas: deste arame: têm
este sabor tão antigo: uma memória
talvez. com que me rasgas o corpo:
gato de nove caudas: estalando uma
e outra vez.

não sei que mais álcool beber: se
este copo: tão cheio: sem fundo: me
embriagou até: não conhecer: o nome:
de quem sou: ou o que é. é um sabor
tão antigo: como o nosso amanhecer
de tempestade.

não sei por que rua seguir: se esta
rua: onde os candeeiros se dobram:
fugindo: de mim: é a mesma por onde
fui: ontem: e outro dia: mas não
daquela vez. talvez chegando a casa:
talvez.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Esquissos

traçados na margem esquecida
da folha suja
espreguiçámos demónios e
tingimo-nos de rascunhos que sonhámos
(nós ou ele? que sonho é sonho de quem?)

e as letras em fila formando
palavras de mil faz-de-conta
troçaram de nós,
rabiscos na margem esquecida
da folha perfeita
do conto em que éramos
aparte.

e tu riste.
e eu contigo.

dançámos por entre as letras,
quebrámos palavras e
sua sintática perfeição
porque na margem esquecida
da folha banal
em que nos esboçaram
nasceu todo um livro.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Génesis

sim, temos as faces lívidas. perguntam "é então a morte?"
e nós rimos. "estranha forma de morrer", beijas-me nua
e eu sei que vi os teus dedos [a sua pureza rasgou-me o olhar].
- o branco do teu rosto é a cor da minha cegueira -
e nenhum homem [desses que vêm e perguntam e
te abraçam e te pedem a tua pele nos seus lábios]
nenhum deles saberia descrever a cor das nossas faces.
limitam-se a olhar, tremendo a cabeça "é então a morte?"
e sorrimos. "é uma forma de ver", devoro-te nua
e quebra-se a cúpula e Ele chega e entrega-nos
a chave deste Jardim.

Equilibrium

quase se quebrou
o homem de cristal onde escolheste
dormir. esse homem que
não tem rosto e grita em silêncio.
quase se quebrou.
quase.